Praga: o compositor

O mercado do funk não tem espaço para compositor. Nunca teve. Isto está sendo bacana, isto que estou conseguindo realizar, uma coisa que já via lá atrás.

Embora há muito eu admirasse “Visão de cria” (2008) e “Vida bandida” (2009), só tomei da existência de seu autor através de uma postagem no Facebook que anunciava a matéria do Meia Hora de domingo, 26 de maio de 2013. Inesperadamente o DJ Gelouko apresentou-me ao compositor nas primeiras horas de sexta-feira, 31 de maio, durante a Roda de Funk de São Gonçalo. A entrevista que segue foi realizada em sua residência, na Vila Cruzeiro, sexta-feira, 14 de junho, e contou com a participação do fotógrafo Vincent Rosenblatt. Transcrevo-a aqui integralmente em cinco partes: “o compositor”, “a música”, “a Penha”, “estilo” e “liberdade”.

Carlos Palombini: — No meio funk você é conhecido como Praga ou “mano Praga”; na reportagem do Meia Hora,1 aparece como Thiago dos Santos; no WordPress, é Thiago Jorge Rosa dos Santos. Como você prefere ser chamado?

Thiago dos Santos: — Eu prefiro ser chamado de Thiago mesmo, mas Praga é um apelido que pegou. Vem da escola, da época de escola — a gente zoava muito, perturbava muito —, e acabou ficando. Fiquei conhecido assim. Frequentava as reuniões de pichadores. Eu era pichador também. Era época de adolescente mesmo. Aí ficou, “Praga”.

Carlos Palombini: — Você poderia contar resumidamente sua vida?

Thiago dos Santos: — Minha vida, em resumo, é uma superação. Minha vida se resume à superação: superar obstáculos, enfrentar, desafiar; ser desafiado e vencer desafios. É isso, minha vida é isso.

Carlos Palombini: — Até conhecê-lo, eu não sabia da existência desta figura, o compositor de funk. Você compõe letra e música?

Thiago dos Santos: — Componho letra e música, mas não sou músico: pra ser considerado músico, tem que saber tocar pelo menos um instrumento. Eu não sei tocar nenhum instrumento; mas a melodia, a letra, eu crio mesmo de cabeça, assim, naturalmente.

Carlos Palombini: — Existem outros como você? Quem são?2

Thiago dos Santos: — Eu conheço de nome — de nome — o B.O. em São Paulo, que é quem mais compõe as letras dos MCs de lá, mas é também MC. Tem o Léo, Léo da Zona Sul, muito bom, um dos melhores que conheço; MC, não só compositor. Tem o Rodriguinho do Marapé, ótimo compositor, mas de São Paulo — Marapé é uma comunidade de Santos, Baixada Santista. São os que conheço. Tem outros. Deve haver outros por aí. Os que conheço são esses.

Esqueci de citar o Orelha, que para mim é um gênio; Dido, autor de muitos sucessos da Marcelly e outros; Cidinho General, de quem sou fã; Copinho, com quem divido algumas autorias; Romeu, meu compadre, com quem fiz algumas canções no passado; Andrezinho Shock, rei do consciente; Galo, da Rocinha, o mestre; Fhael, do Manguinhos, que, dessa nova geração, pelo menos pra mim, é o melhor; Pingo, do Acari; Capela, MC Ricardo… Lembrando que todos são MCs, tanto estes quanto os anteriormente citados. Ainda falta o compositor do Catra, que fazia dupla com ele antigamente, mas não lembro o nome. Tenho que perguntar a alguém.

Quase ia deixando de citar o Cláudio, que foi quem fez as primeiras músicas do Smith. Cláudio é o autor deste mural, que ficou famoso na época das operações.

Vila Cruzeiro, Complexo da Penha, 25 de novembro de 2010, foto de Tasso Marcelo, AE

Vila Cruzeiro, 25 de novembro de 2010, foto de Tasso Marcelo, AE

Ah, sim, esqueci de comentar que o Felipe Boladão, da Baixada Santista, tem sido o MC mais regravado após sua morte. Ótimo compositor, outro MC muito bom, compondo, é o Bó do Catarina.

Carlos Palombini: — Como você se tornou letrista e compositor?

Thiago dos Santos: — Bom, eu era MC. Eu cantava, mas era sempre muito tímido. Por isso não gostava desse assédio — o “assédio” que eu digo não é questão de fama — das pessoas: “poxa, cara, canta aqui”, “vem aqui”, “dá uma palhinha”. Isso me incomodava muito. Decidi então parar de cantar e só compor mesmo.

Carlos Palombini: — Como funciona, do ponto de vista do compositor, o mercado do funk carioca?

Thiago dos Santos: — O mercado do funk não tem espaço pra compositor. Nunca teve. Isto está sendo bacana, isto que estou conseguindo realizar, uma coisa que já via lá atrás. Nunca teve porque as pessoas sempre menosprezaram. Funk? Pra que precisa de compositor no funk? O cara canta qualquer porcaria ali, faz sucesso, não precisa de um compositor. Nos raps, uma coisa mais complexa (tem uma letra, tem uma mensagem), a gente começou a fazer uma letra com um diferencial. As pessoas começaram a ver de outra forma: “aquela letra ali é muito boa”, “eu gostei daquela letra”. Isso foi tomando forma e hoje existe. Existem compositores de funk — não só eu — como os que acabei de citar.

Carlos Palombini: — Como é a vida de um compositor bem sucedido de funk?

Thiago dos Santos: — A vida de um compositor bem sucedido de funk é difícil, não é fácil não. Não é uma coisa rentável. O compositor, em todas as esferas da música, qualquer gênero musical, é quem menos ganha. Quem ganha mais é o artista, fazendo show, com a imagem, o direito de imagem. Porque direito autoral no Brasil é complicado. De funk então, mais complicado ainda. Então a gente tem uma forma de negociar, e ganha dinheiro assim. Um compositor de funk bem sucedido não é o que se pode chamar “uma pessoa bem sucedida”, “bem de vida”, mas vivo disso — graças a deus. Pra mim tá bacana. Tá valendo.

Carlo Palombini : — Você é conhecido como “caneta de ouro”. Esse “ouro” é espiritual, você ganha muito dinheiro ou outros ganham?

Thiago dos Santos: — Eu acho que esse ouro é espiritual, não é um ouro real.

Carlos Palombini: — Você sobrevive ou poderia sobreviver exclusivamente dele?

Thiago dos Santos: — Sobrevivo.

 

Thiago Jorge Rosa dos Santos, Vila Cruzeiro, junho de 2013, foto de Vincent Rosenblatt

Thiago Jorge Rosa dos Santos em sua residência na Vila Cruzeiro, 14 de junho de 2013, foto de Vincent Rosenblatt

 

 

Continua em Praga: a música.


1 Jéssica Cunha, “O poeta da Vila Cruzeiro”, caderno Comunidades, Meia Hora de Notícias, domingo, 26 de maio de 2013, 2–3.

2 O segundo e o terceiro parágrafos da resposta provêm de mensagens trocadas na segunda-feira, 24 de junho; o quarto, de mensagem da terça, 2 de julho.

 

FOTO: Igreja da Penha vista do morro da Chatuba, Rio de Janeiro, sábado, 28 de maio de 2005. © Vincent Rosenblatt / Agência Olhares