Gustavo Lopes: o MC Orelha

Quando enxergo alguém como bandido, posso não saber detalhes, mas conheço a trajetória: foi vapor, foi gerente, teve seu sofrimento. Eu o respeito como bandido.

Entrevista com o MC Orelha no Estúdio dos Loucos, Largo da Batalha, Niterói, quarta-feira, 10 de maio de 2012, com a participação dos DJs Gelouko, Junior e Leo Bolinha

No final da manhã de quarta-feira, 10 de maio de 2012, atravessei pela primeira vez a baía de Guanabara, ao encontro daquele que se tornou, com “Na Faixa de Gaza é assim”, um dos MCs de maior credibilidade no Brasil, e um de meus artistas preferidos. Gustavo Lopes me mostrou o Bumba, o Morro do Céu, e o Rio de Janeiro vistos do Capim Melado.

Carlos Palombini: — Você se define no Facebook assim: “Sou apenas um cara que explora o sentido das palavras”. Além de ser o “cara que explora o sentido das palavras”, quem é o MC Orelha?

Gustavo Lopes: — O MC Orelha é o Gustavo, uma versão para os outros. Porque o Gustavo é uma versão para mim. Eu tenho que me fazer duas pessoas, não é? Às vezes mesmo não sou quem eu sou, quem estou parecendo ser, como o Orelha. Já que você tocou no Facebook, ali acontece muito isso: eu tenho que mostrar às vezes uma coisa que não sou. E às vezes eu mostro uma coisa que sou, disfarçadamente.

Carlos Palombini: — Quem é o Gustavo?

Gustavo Lopes: — O Gustavo é um cara de praticamente vinte e seis anos, completando agora, em setembro, às vezes com cabeça de trinta, às vezes com cabeça de doze. Um cara que já teve muito sofrimento, porém não o suficiente para me mostrar que posso conseguir muito mais. Sempre acho que posso querer algo mais, mas esse meu jeito acomodado de ser não deixa. O Orelha está entre um personagem e a realidade do Gustavo. E o Gustavo é isso, o que vivo todo o dia. O Orelha talvez não seja.

Carlos Palombini: — Como é a vida no Capim Melado?

Gustavo Lopes: —  O Capim Melado, onde moro desde pequenininho, não é uma favela. Por mais que seja uma comunidade de periferia, não é favela, favela mesmo, aquelas. Tem muito mato, mas também algumas casas coladas às outras. Não chega a ter, como muita gente pensa, o aspecto daquelas favelas do Rio. Pensa em favela, pensa uma casa em cima da outra, bequinho. Não. A vida no Capim Melado é tranquila por isso. Pelo lado do MC Orelha, é bom morar lá porque todos, apesar de me ver também como MC Orelha, me vêem mais como Gustavo. E a tranquilidade, por não ser essa favela tão como estou dizendo que são as outras. Não tem essa coisa de toda a hora ficar entrando polícia. Também não tem essa coisa de marginalidade tão grande assim. É tranquilo pra morar com meus pais, e morar lá é sossegado.

Carlos Palombini: — O Colégio Estadual Baltazar Bernardino foi importante pra você?

Gelouko: — Como foi!

Gustavo Lopes: — Como foi! Isto é uma coisa engraçada. Eu estudava na comunidade mesmo, na Ititioca, e fui pro Baltazar quando comecei a fazer a quinta série. Foi quando comecei a ver outra realidade, gente de outras comunidades, e às vezes também muita marginalidade: gente sendo esfaqueada, gente armada, fumar maconha. Essa realidade formou o Orelha.

Carlos Palombini: — Como o funk e o rap apareceram na sua vida?

Gustavo Lopes: — Desde muito pequeno. De novinho. Um período que lembro — antes de escutar, claro, em outros lugares — é aquele em que um colega me emprestou uma fita cassete com proibidão. Tinha um do Mascote, um do Cidinho, um do G3. Comecei a ver que gostava de funk, e de qual funk gostava. Aquele de letra, proibidão mesmo.

Carlos Palombini: — Você lembra quais eram esses funks?

Gustavo Lopes: — O do Mascote, tenho que lembrar agora, mas o do Cidinho, lembro muito bem: “E se o gato passar não se assuste não, se a chapa esquentar é cobrança meu irmão”.1 O do G3, “tu vai tomar de G3, vai tomar de G3”.2 Ah, e o do Mascote, “alemão, tu passa mal porque o Comando é Ver…”,3 que é o hino.

Carlos Palombini: — Você teve ídolos na sua infância e juventude?

Gustavo Lopes: — Esses três. Tive vários, tanto que vou cometer injustiça se falar. Mas pra classificar, pra não deixar faltar ninguém, vou dizer uma coisa: eu sou fã dos MCs dessa geração. O Cidinho e Doca, o Catra, o Menor do Chapa. Posso estar esquecendo alguns. O Gil do Andaraí, o Mascote, o Duda do Borel. Inclusive o Frank: já curti muito o Frank.

Gelouko: — O Galo.

Gustavo Lopes: — O Galo, claro, principalmente o Galo, um dos que fazem letra com um sentido poético: “Formiga de tamanco não sobe parede não”.4 Você para pra pensar, porque existe um ditado. Eu gosto muito desse tipo de funk.

Carlos Palombini: — Você disse numa entrevista anterior que já esteve no problema. Como você entrou no problema, como é a vida no problema, e como você saiu do problema?

Gustavo Lopes: — Quis dizer que já fui preso, que estive dentro do crime. Não sei se posso dizer que saí desse mundo porque, de certa forma, a gente acaba sendo vinculado, até pelo trabalho, fazendo funk pra bandido. Não sei como dizer. Eu nunca fui traficante, nunca trafiquei na minha vida, mas já assaltei, fiz sequestro. Fui preso como sequestrador, menor de idade na época. Então fui pro CRIAM (Coordenadoria de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor), fiquei preso no Padre Severino, um presídio na Ilha do Governador. Fugi do CRIAM e, quando fiz 18 anos, limpou minha ficha, porque, menor de idade, limpa. Essa lei nossa, boa, da qual sou mais um exemplo. Por isso estive dentro do problema, e saí quando voltei a estudar. Na época em que estava foragido, trabalhei como camelô. Voltei a estudar quando conheci uma pessoa com quem fui morar. E consegui sair voltando pro funk. Eu já havia gostado de cantar funk, cantava nas comunidades, mas tinha parado.

Carlos Palombini: — Como é a vida na cadeia?

Gustavo Lopes: — Tem uma música do Catra que retrata muito bem: “A vida na cadeia não dá nem pra imaginar”. É do G3, mas Catra cantava na época: “Liberta coração, liberta coração, a vida na cadeia não é mole não”.5 Costumo dizer mesmo isto, algo em que reparei: foi um aprendizado muito bom pra mim. Pra alguns, não, porque acaba sendo uma continuidade. Vi moleque que tinha vinte passagens antes dos dezoito anos, uma coisa contínua, que não tinha jeito, moleque de rua mesmo. Vi tudo isso. Cheguei a escutar de uma assistente social que eu era o único menino do presídio — havia mais de duzentos, trezentos lá — que tinha o segundo grau. E eu estava no primeiro ano do segundo grau. Era o único que tinha chegado ao segundo grau. A vida na cadeia pra mim foi um aprendizado muito grande, mas pra outros não, e eu sei ver dessa forma. É sofrida, porém a gente acaba se acostumando. As pessoas dizem: “Caraca, como é que o cara vai viver trinta anos na cadeia?” Ele vive. O ser humano se adapta a qualquer ambiente, mesmo de sofrimento.

Carlos Palombini: — Como surgiu “Na Faixa de Gaza é assim”, e onde fica a Faixa de Gaza da música?

Gustavo Lopes: — A “Faixa de Gaza” faz referência à Leopoldo Bulhões, por comparação com a Faixa de Gaza real. Fiz essa música, não sem querer, fiz por querer. Queria fazer uma homenagem ao cara que pediu a música, e calhou de outro bandido pensar que fosse pra ele, por isso estourou. Mas fiz a música trabalhando, entre um cliente e outro, na época em que estava empregado numa assessoria de cobrança. Eu fazia cobrança. Entre um cliente e outro, escrevi no bloco de notas onde foram feitas várias músicas minhas, o bloco da empresa, do sistema, no qual eu fazia um atalho, pra ninguém achar. Fiz a “Faixa” e não tinha ritmo ainda, fiz a música, e falei: “Caraca, na moral, essa bateu na veia!”6 Mostrei pra um colega que estava na PA ao lado, fazendo atendimento. Ele olhou, eu falei, “aí!”, e joguei pra ele pelo sistema. “Caraca, essa tá bolada!” Ele morava numa favela de facção rival. Veja você, como é a ironia do destino. “Caraca, eu sou a primeira pessoa a ver?” Falei: “é, você é a primeira pessoa a ver”.7

Carlos Palombini: — Quem produziu a versão que você chama de “Santa Rosa” e como ela foi gravada?

Gustavo Lopes: — Santa Rosa é o bairro para o qual eu fazia — continuo fazendo — muita música. É uma alusão ao nome “Baixinho”, à sua origem.

Gelouko: — E acharam que fosse o da Leopoldo!

Gustavo Lopes: — Eu estava em casa com cinco amigos. Tinha recém começado a trabalhar com Gelouko e disse: “Cara, eu tenho que mostrar essa música pra Gelouko, né, pô, essa música é maneira pra caralho, agora eu tenho que produzir, pra mostrar produzida.” Gravei em cima de um tambor. Como eu já sabia mexer, porque era mesmo curioso dos programas que só eu conhecia, fiz a batida em cima e misturei. Um amigo falou: “pô, cara, mas esse negócio tá muito seco, tem que botar alguma coisa, por que você não bota aí: ‘nós tá que tá, hem!’?” Eu disse “é”, gravei, e coloquei na virada. Foi assim. Fiz por acidente mesmo, querendo mostrar pra Gelouko, e explodiu do jeito que é.

Carlos Palombini: — De que modo o sucesso dessa música alterou sua vida?

Gustavo Lopes: — Fora o anonimato, e financeiramente? Trouxe pessoas que talvez não estivessem aqui hoje. Talvez eu não pudesse dar o que dou a meu pai, a minha mãe. Minha irmã passou sufoco onde mora, leva uma vida complicada hoje, e eu consigo ajudar. Tudo isso faz parte da mudança porque, não fosse assim, só se eu tivesse estudado muito, e a vida que eu levava não permitia estudar. Eu havia parado para poder trabalhar em outro emprego, tinha duas carteiras assinadas. A “Faixa de Gaza” mudou não só minha vida como a de Gelouko. Queira ou não queira, foi — e é — a referência do Orelha. Mudou minha vida, a de muitas pessoas, e a do Orelha. Talvez eu não fosse o Orelha sem a “Faixa de Gaza”. E se eu não fosse o Orelha, talvez não tivesse a referência do Estúdio dos Loucos. Tudo veio uma-coisa-ligada-na-outra.

Carlos Palombini: — O fato de ter obtido seu reconhecimento nacional através de uma música que se tornou um hino do CV atrapalha?

Gustavo Lopes: — Atrapalha. Atrapalha e ajuda, porque gosto, é aquele caso, tem gente que gosta e tem gente que não gosta, como em qualquer coisa na vida. Atrapalha porque é vinculado à criminalidade. E a realidade dói, não é? A algumas pessoas, pode incomodar eu estar cantando a “Faixa de Gaza” numa casa de show: ao dono, pelo marketing. “Pô, que é isso?” Sobretudo casa de show, onde eles costumam ter amigos na polícia. Como receber um policial e a família com a “Faixa de Gaza”? Mesmo que eu não cante, e o público: “Comando Vermelho…”? Deixo de ir a alguns lugares, alguns DJs deixam de tocar minha música: “ah, esse moleque aí, pô, o Orelha, tá maluco, vou tocar uma música desse moleque?”

Carlos Palombini: — É uma pergunta honesta, que não precisa ser publicada (se você preferir, desligo o gravador) e, evidentemente, também não precisa ser respondida: o que o Comando Vermelho representou, e o que ele representa pra você?

Gustavo Lopes: — Representou, continua representando o mesmo que sempre representou, o mesmo que representa para qualquer jovem que já tenha segurado pelo menos um 38 na mão pelo Comando Vermelho. É como se fosse uma paixão. Eu consigo compreender problemas de outras nacionalidades quando olho pro Comando Vermelho: Israel, a Palestina, a religião. Como uma pessoa pode se explodir para matar gente que não tem nada a ver? É a doutrina. A mesma coisa o Comando Vermelho. É inato. Você já nasce dentro da criminalidade ao nascer dentro da favela. O Comando Vermelho é uma união, uma força dos refugiados. Isso gera guerras de facção. Já é outra coisa.

Carlos Palombini: — Você já teve problemas com a polícia por causa do que canta?

Gustavo Lopes: — Já. Só nunca fui preso por causa do funk, mas tomei tapa na cara, fui esculachado verbalmente. Tenho o reflexo constante de ficar com medo de sair de casa em certos horários porque posso estar saindo da favela e eles entrando. E vão me reconhecer. Eles sabem quem eu sou. Não é difícil, com a orelha que tenho. Eu tenho muito medo, e já aconteceu muita coisa comigo e a polícia. De me levar à delegacia, mas não prender; de estar com nada, tranquilão, e eles quererem sempre alguma coisinha, quererem sempre arrumar algum problema. Nada comparável ao que um bandido de verdade já sofreu: ser preso, esculachado, tomar tiro. Isso, polícia não. Polícia, até agora, além de me esculachar, fez apenas seu papel.

Carlos Palombini: — Como esses problemas foram resolvidos?

Gustavo Lopes: — Eles lá, eu aqui, entendeu? Eu tiro como exemplo o que aconteceu com os MCs que foram presos e foi pra mídia. Se acontecer comigo, não serei preso como o MC Orelha. Eles podem forjar, me matar, me ocultar, me prejudicar de modo que não venha a prejudicá-los, porque já viram que prender MC por música não dá em nada. E se der, não há de ser o que querem, porque polícia que sobe morro tem ódio de mim. É desses que tenho medo. A polícia civil vai ter de agir conforme a lei. E vai acabar em nada.

Carlos Palombini: — Você já precisou recorrer a advogados ou à Justiça para se defender?

Gustavo Lopes: — Ainda não, e confesso que tenho muito medo, se um dia precisar.

Carlos Palombini: — Como a prisão ilegal dos MCs Frank, Max, Tikão, Dido e Smith afetou seu trabalho e sua carreira?

Gustavo Lopes: — Pra ser bem realista, não deu em nada, a não ser marketing pra eles. Se ocorresse comigo, daria marketing pra mim. Teve algo a ver com mostrar serviço na pacificação do Complexo. Porque se não, tenho muito mais letras pesadas, e não fui preso. Acho ótimo porque nunca quis, quero ou quererei envolvimento com a polícia: ter passagem, ser realmente preso, como eles foram. Isso eu não quero.

Carlos Palombini: — As execuções dos MCs Felipe Boladão, Duda do Marapé, Primo e Careca afetaram você?

Gustavo Lopes: — Afetaram porque eu os conhecia, pude apertar a mão de todos como companheiros de trabalho. Mas medo de morrer por causa de funk, é uma das coisas em que parei pra pensar só nos últimos dias. Já imaginei represálias de todos os lados, mas como em São Paulo, não. Ficar sentido pela morte de meus companheiros, pessoas que estavam aí expressando a verdade, por mais que estivessem ganhando um dinheirinho, mas ter medo disso, não, porque já tenho muitos outros medos.

Carlos Palombini: — O atentado recente contra o MC Duduzinho afetou você?

Gustavo Lopes: — Não. Desse tempo em que tenho cantado, existe um histórico, de sete a dez bailes em que o pessoal dá tiro e sai correndo. No último, em Porto Alegre, morreu um em cima do palco, na Strike. Veja você. Eu estava tirando fotos no camarim, nem escutei por causa do som, mas Gelouko estava armando a MPC e ouviu. Violência em baile funk, criminalidade, tiro, isso é normal. Já vi nego morrer dentro de baile, já vi nego ser baleado, já vi nego correr por causa de tiro. É normal.

Carlos Palombini: — O que você pensa das UPPs?

Gustavo Lopes: — Eu penso só uma coisa da UPP: está sendo um bom marketing pro governo. Porra, Beltrame tá arrasando! Sérgio Cabral então, tá abalando geral. Mas pra comunidade que está sendo pacificada, é uma boa. Ninguém quer ver seu filho no tráfico, na violência, no sinal roubando, porque vai ser preso ou vai morrer. Não tem outra: bandido não morre de velhice. Viu o Escadinha? Viu o Gregório? Viu o Bagulhão? Os fundadores do Comando Vermelho, todos mortos. Quem entra na vida do crime tem que levar no sapatinho.

Carlos Palombini: — O funk mudou depois das invasões da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão?

Gustavo Lopes: — Com certeza! Mudou o proibidão. O bandido agora não quer seu nome no rap: “não, tá maluco, vou ficar pixadão aí, eu vou acabar rodando.” O crime acaba influenciando o funk.

Carlos Palombini: — Existe alguma forma de ação que possa contribuir para acabar com a violação sistemática do direito constitucional à liberdade de expressão no funk?

Gustavo Lopes: — Só se partir dos grandes, e a gente se unir, os pequenos do funk, porque liberdade de expressão não é só pro funk, é pra qualquer coisa. Tem que partir dos grandes, com movimentação em rede nacional. Principalmente o funk, que hoje em dia tem força em São Paulo, em todo o lugar. Se todos se unissem, sim, mas se continuar nessa de um MC ser preso e o pessoal levantar a ideia, a hipótese, vai virar copa do mundo: só quando acontecer mesmo a gente lembra.

Carlos Palombini: — Você divulga sua música livremente na Internet, distribui CDs, e vive do que ganha com apresentações ao vivo, correto? Você está satisfeito com esse sistema ou preferiria receber direitos autorais e de execução, ser filiado ao Ecad, ter contrato com uma gravadora?

Gelouko: — Filiado, ele já é.

Gustavo Lopes: — Eu recebo PE (por execução). Satisfeito, eu estou. Nunca pensei que conseguisse chegar, por mais que quisesse, porque é difícil pra caramba, a oportunidade que me foi dada, e o talento também. Estou satisfeito, mas queria muito virar um Luan Santana.

Carlos Palombini: — Que músicas você ouve?

Gustavo Lopes: — Gosto de escutar música antiga, MPB: Caetano Veloso, Djavan, Legião Urbana (muito). Gosto de escutar Natiruts. Funk, a letra, mas hoje em dia — não sei se porque trabalho com isso — não estou escutando muito, exceto profissionalmente. Gosto de escutar músicas que transmitam paz.

Carlos Palombini: — Quem são seus DJs e produtores preferidos?

Gustavo Lopes: — São os que trabalham comigo, que sem eles — meu deus! — eu não seria o Orelha. Gelouko, Junior, Leo Bolinha, o Wagner. Gurilão, que está atrasado. São esses.

Carlos Palombini: — Como o Gelouko entrou na sua vida e se tornou seu produtor musical?

Gustavo Lopes: — O Gelouko já tinha um nome. Foi na época em que comecei a trabalhar com o Junior. Eu andava muito com o Junior, mas como o Gelouko fazia baile no Rio, queria trabalhar com ele também. Ele disse: “vou te dar uma oportunidade”. Até porque, malandro já de pista de funk que era, ele viu que tinha uma coisa andando. Marcamos um dia, depois do carnaval. Passou o carnaval e eu pensei que fosse caô dele: “não, deixa passar o carnaval”. Mas foi o tempo certinho. Eu já tinha algumas músicas tocando em Niterói. Foi quando fiz a “Faixa de Gaza”, mostrei pra ele, e começamos a trabalhar. Foi quase por acidente. Antes do Gelouko, o DJ Wagner e o Junior já me apoiavam. O Leo Bolinha eu só conhecia de nome. Depois, todo o mundo trabalhando junto.

Carlos Palombini: — Você diz no Facebook que odeia política, no entanto, seu trabalho me parece um dos mais políticos e coerentes do funk. Quando Nem foi preso e tantos o ridicularizavam, você deixou de lado o jogo das rivalidades de facção e prestou sua solidariedade ao homem privado da liberdade com “Entre o luxo e o sofrimento”. Quando outros MCs trocaram o funk consciente pela putaria, você apresentou como objeto de desejo um garoto meio torto, que é como você se enxerga. A música seria uma forma de fazer política?

Gustavo Lopes: — No “Segura o garoto” não, porque saiu numa brincadeira, mas meu estilo de música é político, pois todas as minhas letras têm um pouco de consciência. De fato, não é aquela consciência da qual os funkeiros dizem: “é um rap consciente”. A música pode estar dizendo que o cara foi até o banco, assaltou, e matou o vigia. Mas também tenho algumas que são “conscientes”. Quanto ao Nem, você não está de todo errado. O Nem era alemão, mas, por mais que fosse um Amigo dos Amigos, eu não tinha raiva dele, porque o via como bandido. Quando enxergo alguém como bandido, posso não saber detalhes, mas conheço a trajetória: foi vapor, foi gerente, teve seu sofrimento. Eu o respeito como bandido. Não fiz chacota, não fiz música contra ele. Já fiz rap contra a facção. Não fiz essa música pra ele, mas pra um bandido como ele. Poderia ter sido ele.

 

Ouça a entrevista no Mixcloud

 


1 “Dez Mandamentos da favela”, fragmento na voz do MC Orelha, e gravação dos MCs Cidinho e Doca, ao vivo no Chapadão.

“Dez Mandamentos da favela”, MC Orelha (excerto)

“Dez Mandamentos da favela”, Cidinho e Doca, no Chapadão

2 “Vai tomar de G3”, fragmento na voz do MC Orelha, e gravação do MC G3, ao vivo no Complexo do Alemão.

“Vai tomar de G3”, MC Orelha (excerto)

MC G3 canta “Vai tomar de G3”

3 “Comando Vermelho”, fragmento na voz do MC Orelha, e gravação do MC Mascote.

“Comando Vermelho”, MC Orelha (excerto)

MC Mascote canta “Comando Vermelho”

4 “Nem tudo que brilha é prata”, fragmento na voz do MC Orelha, e duas gravações do MC Galo, a segunda, ao vivo no Jacaré.

MC Orelha canta “Nem tudo que brilha é prata”

MC Galo canta “Nem tudo que brilha é prata”

MC Galo canta “Nem tudo que brilha é prata” no Jacaré

5 “Vida na cadeia”, dois fragmentos na voz do MC Orelha, e gravação de Mr Catra.

“Vida na cadeia”, MC Orelha (excerto 1)

“Vida na cadeia”, MC Orelha (excerto 2)

Mr Catra canta “Vida na cadeia”

6 Gustavo Lopes evoca sua reação inicial ao concluir, ainda sem o tamborzão da base, “Na Faixa de Gaza é assim”.

Caraca, na moral, essa bateu na veia

7 “Na Faixa de Gaza é assim”, com a letra original e produção do próprio MC, hoje com mais de dez milhões de acessos no Youtube.

Na faixa de gaza é assim (Santa Rosa)

Na Faixa de Gaza é só homem bomba, na guerra é tudo ou nada,
Várias titânio no pente, colete à prova de bala.
Nós desce pra pista pra fazer o assalto, mas tá fechadão no doze,
Se eu tô de rolé, seiscentas, bolado, perfume importado, pistola no coldre.

Mulher, ouro e poder, lutando que se conquista,
Nós não precisa de crédito, nós paga tudo à vista.
É Ecko, Lacoste, é peça da Oakley, várias camisas de time,
Quem tá de fora até pensa que é mole viver do crime.

Nós planta humildade pra colher poder, a recompensa vem logo após,
Não somos fora da lei porque a lei quem faz é nós.
Nós é o certo pelo certo, não aceita covardia,
Não é qualquer um que chega e ganha moral de cria.

Consideração se tem pra quem age na pureza,
Pra quem tá mandado o papo é reto: bota as peças na mesa.
Quantos amigos eu vi ir morar com deus no céu,
Sem tempo de se despedir, mas fazendo o seu papel.

Por isso eu vou mandar, por isso eu vou mandar assim:
Comando Vermelho, RL até o fim.
É vermelhão desde pequeninim,
Só menor bolado nas favelas do Baixim.

Não dá, não dá, não dá não, por isso eu mando assim:
Comando Vermelho, RL até o fim.
É vermelhão desde pequeninim,
Só menor bolado nas favela do Baixim.

Nós tá que tá, hem? Caralho!

 

 

FOTO: Baile funk no Morro dos Prazeres durante a filmagem de Favela on Blast, sábado, 31 de março de 2007. © Vincent Rosenblatt / Agência Olhares