Notas sobre o funk
I
O tambor não é essencial à capoeira nem à “vadiagem”. Tampouco me sinto capaz de explicar sua importância na “constituição da música popular brasileira”. Há muitos “processos” em jogo. A começar por toda uma cadeia de automatismos psíquicos: “o negro” é “o tambor” e “o tambor” é “a África”, logo, enaltecer o tambor é fazer ativismo racial. Mas de que tambor, de que negro e de que África se trata? Para o autor do livro Do samba ao funk do Jorjão1 “tal reducionismo quanto a essa África musical batuqueira e primitiva, tão recorrente nas lides acadêmicas, é uma grande bobagem racista sem nenhum fundamento científico que possa ser levado a sério”.2 Os “tambores africanos” e a “casa de Tia Ciata” necessitam passar por análises similares àquela que Carlos Sandroni realizou para a “síncope brasileira”.3
II
Um instrumento marcado é o pandeiro de João da Baiana (João Machado Guedes, 1887–1974), cuja lenda cito na versão de Ary Vasconcelos:
Aprendeu a tocar pandeiro com a mãe, em um tempo em que isso era proibido e que a polícia, na Penha, tomava todos os que podia e quebrava-os sem cerimônia. Isso explica porque êle, um dia, foi a uma festa no morro da Graça em homenagem a Pinheiro Machado — freqüentador, com Irineu Machado, Lopes Trovão e Paulo Frontin de sessões de candomblé — e não levou seu instrumento. Pinheiro estranhou e João explicou que a polícia o quebrara. O famoso político disse que êle fôsse, no outro dia, ao Senado, procurá-lo. João foi. Pinheiro Machado recebeu-o muito bem e disse-lhe que se dirigisse a uma casa para fazer um nôvo. João foi ao Cavaquinho de Ouro e encomendou o pandeiro que usa até hoje. Nêle há uma dedicatória histórica. “Ao João da Baiana, minha admiração. Senador Pinheiro Machado”.4
O Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira situa esse episódio em 1908.5 De lá para cá as coisas pioraram bastante na Penha. Se poderia supor que, neste aspecto, o republicanismo conservador de Pinheiro Machado fosse mais esclarecido que nossos Trabalhadores e Movimentos Democráticos.
III
O trânsito entre gêneros musicais de ideias e técnicas ou dispositivos não me surpreende. Guthrie Ramsey afirma em Race Music: “Como um músico afro-norte-americano criado num ambiente de classe trabalhadora primariamente segregado, quando eu escutava ou executava um estilo de música de preto (race music)6 parecia que os outros nunca estivessem longe ou completamente fora do campo auditivo.”7 Mais que continuidades e rupturas entre gêneros afro-brasileiros, me interessam as ressignificações e apropriações8 transnacionais de manifestações da diáspora africana nas Américas.
A partir dos anos 1950 a Jamaica começa a praticar uma série de procedimentos de reprodução, execução e manipulação de certa variedade de rhythm and blues afro-norte-americano. Tais dispositivos incluem o sound system, o selector, o deejay e o dub-plate, e resultarão no que entendemos hoje por música nacional jamaicana — e obviamente não falo de mento. Exportados para o Bronx nova-iorquino nos anos 1970, eles serão recriados, desenvolvidos e adaptados em função de outro equipamento, outro público e outro repertório. E receberão o nome hip-hop. Os instrumentos eletrônicos se popularizam na primeira metade dos anos 1980, e o hip-hop adota a bateria analógica TR-808. O trabalho de Afrika Bambaataa assume a designação electrofunk. Já o electro desloca o foco, do rap propriamente dito, para a parte instrumental, ou base. Na Flórida ele dá origem ao Miami bass.
Kenneth Davy e seu sound system, o Mutt & Jeff, atuante na segunda metade dos anos 1950 e primeira dos anos 1960.
A música afro-norte-americana já era consumida por grupos economicamente desfavorecidos no estado do Rio desde o início dos anos 1970 na forma do soul, e mais tarde, do funk, da disco, do hip-hop, do electro, do Miami bass e do Latin freestyle.
Algumas culturas musicais afro-norte-americanas dos anos 1970 expressaram o elemento “latino” através de congas. Na passagem do soul para a disco, a música do selo Salsoul é um exemplo. Em entrevista publicada no blog Funk de Raiz o DJ Marcelo André faz notar a presença de tambores numa gravação de electro de Nova Iorque, localmente conhecida por “Melô da macumba”, e noutra de electro de Miami, localmente designada por “Melô da explosão”.9
“Light Years Away: Dub Version”, do Warp 9 (1983), e “Don’t Stop the Rock: Instrumental”, do Freestyle (1985), as Melôs “da macumba” e “da explosão”.
Na perspectiva colonialista, o funk carioca é uma “latinização” do rhythm and blues. Na nacionalista, ele é um afro-abrasileiramento do hip-hop.
IV
De fato, em 1891 o Art. 72, § 3º de nossa primeira Constituição republicana prevê que “todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto”. O excerto de Ary Vasconcelos mostra com todas as letras que, na primeira década do século passado, o alto escalão da política nacional frequentava candomblés.
A cena se passa em 2009. O DJ Byano, do morro da Chatuba, no Complexo da Penha, encontra-se com o senador José Sarney num candomblé da Vila Cruzeiro. Conversa vai, conversa vem, Harley Fabiano Fagundes Santos deixa escapar que, em operação recente, a PMERJ vandalizou sua equipe. O Excelentíssimo lhe solicita que compareça a seu gabinete no Congresso Nacional para receber equipamento novo, ao qual o Senador aporá sua assinatura. Ora, (a) não havia candomblés no Complexo da Penha em 2009; (b) porventura houvesse, o Senador não se teria deixado ver num deles; (c) o DJ Byano não gosta de macumba; (d) o excelentíssimo Senador está cagando e andando para o funk.
Madrugada de domingo, 27 de setembro de 2009: em foto de Vincent Rosenblatt, o DJ Byano diante do que restou de sua equipe, o Chatubão Digital, após incursão policial extorsiva ao Morro da Chatuba, no Complexo da Penha. Para outras imagens do evento e o testemunho do fotógrafo, ver o tema Equipes de Som na coleção Rio Baile Funk da Galeria da Agência Olhares.
A indústria fonográfica brasileira sempre se caracterizou pela presença forte de artistas nacionais. Ela estava em franca expansão nos anos 1970, com uma massa de cantores populares cujas vendagens financiavam “os grandes nomes” (como mostrou Paulo Cesar de Araújo),10 aqueles mesmos que cantavam “o povo” e “o dia que virá”, que veio para eles. O ano de 1970 é o da explosão black nas telas, com as aparições de Toni Tornado e Trio Ternura, Dom Salvador e Abolição, e Erlon Chaves e Banda Veneno no Quinto Festival Internacional da Canção Popular. Esses artistas não representavam o candomblé, mas uma negritude esteticamente dissidente e afirmativa, por força do soul. Foram varridos para baixo do tapete a fim de que Elis Regina e Marcos Vale gravassem suas respectivas versões de “Black is Beautiful” para os grandes selos. Enquanto isso a rede Globo, cujo faro para o uso do léxico é bem conhecido, lançava o programa Som Livre Exportação.11
V
Sem dúvida, trata-se de disciplinar, expropriar e lucrar, no samba como no funk. Mas a analogia não me satisfaz porque, além dos contextos históricos distintos, samba e funk sintetizam estéticas divergentes, que correspondem a diferentes políticas de relacionamento entre “morro” e “asfalto”, inclusive no plano das identidades. Sonia Giacomini fala de “integração subalterna” no samba.12 O modo de relacionamento do funk é de autonomia e desafio. Funk disciplinado não é funk.
No pagode há mediadores: Xande de Pilares e o grupo do Cacique de Ramos, por exemplo; um “pagode de raiz”.
VI
Guillermo Caceres, Lucas Ferrari e eu pesquisamos o Tamborzão, conhecido como a primeira base (ou “batida”) brasileira do funk carioca.13 As narrativas acerca de sua autoria variam da coletiva à individual com colaboradores. No sentido amplo (e coletivo), o Tamborzão começa a surgir quando o electro se mistura com o afro-brasileiro. O caso mais antigo que pude identificar é a montagem “Macumba Lelê”, dos DJs Alessandro e Cabide, no quarto volume da série Beats, Funks e Raps, dos DJs Grandmaster Raphael e Amazing Clay, em 1994.14 Essa montagem combina um loop de atabaques, samples de berimbau e a base Volt Mix — extraída de uma faixa de electro de Los Angeles, o “808 Beatapella Mix” (1988),15 que foi a preferida dos MCs fluminenses por aproximadamente dez anos.
No sentido restrito (e individual), o Tamborzão passa a existir quando o DJ Luciano Oliveira, de Campo Grande, cria um loop para reforçar o Volt Mix. Esse loop foi gravado pela primeira vez na faixa “Rap da Vila Comari”, dos MCs Tito e Xandão, no CD DJ Lugarino apresenta os melhores da Zona Oeste, em 1998.16
Trata-se de gravações digitais (ou de gravações analógicas digitalizadas) de tambor e berimbau, que não implicam relação direta do DJ com a capoeira ou o candomblé. Guillermo Caceres identificou os seguintes samples da R8 MKII no loop de 1998: na linha inferior, o ambo kick, ou bumbo com ambiência (ressonância); na linha média, o attack tom 2 e o attack tom 1, correspondentes ao tom-tom grave e ao surdo de chão da bateria (ou aos tom-tons médio e grave); na linha superior, slap high conga e open low conga, a conga aguda em slap e a conga grave aberta.
Torcidas de futebol e escolas de samba cumpriram seu papel no funk “acústico” (ou unplugged). O funk com instrumentos de escola de samba pode ter começado quando a torcida Raça Rubro-Negra parafraseou o “Rap do Mutuapira”, “Rap do Pira” ou “Rap do Pirão”, do MC D’Eddy, lançado em 1992 e gravado em 1993 no LP Beats, funks e raps, do DJ Grandmaster Raphael,17 para fazer dele um de seus hinos.18
Por outro lado, em 1997 Mestre Jorjão, da Mocidade Independente, então em seu segundo ano como mestre de bateria da Unidos do Viradouro, introduziu no desfile a “paradinha funk”, que valeu à escola de Niterói premiação máxima.
VII
O baile funk “de favela” ou “de comunidade” é um ritual secular, onde Deus e Jesus são frequentemente citados. Eles podem estar banhados numa atmosfera de amor extático, uma aura visível de entendimento entre as inteligências dos corpos.
VIII
De meu ponto de vista — e exclusivamente dele — falar em “resistência” seria dizer que a cultura afro-brasileira é reativa. Prefiro entender o funk como uma cultura do gozo, a “subversão pelo riso”, expressão que Rachel Soihet emprega para o antigo carnaval carioca.19 Com tambor ou sem ele, o funk carioca é uma estratégia de sobrevivência. Tanto mais o matam, mais intensamente ele vive, tantas outras formas assume, tão mais incômodas e provocativas. Ele se alimenta do genocídio nosso de cada dia.
1 Spirito Santo, Do samba ao funk do Jorjão: ritmos, mitos e ledos enganos no enredo de um samba chamado Brasil, Petrópolis, KBR, 2011.
2 Spirito Santo, comunicação pessoal, 15 de novembro, 2014.
3 Carlos Sandroni, Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917–1933), Rio de Janeiro, Zahar e UFRJ, 2001.
4 Ary Vasconcelos, Panorama da música popular brasileira, São Paulo, Martins Fontes, vol. 1, 1964, 65.
5 Ricardo Cravo Albin, Dicionário Houaiss ilustrado: música popular brasileira, Rio de Janeiro, Paracatu, 2006, 370.
6 O termo raça teve conotações positivas com referência a afro-norte-americanos nas décadas que se seguiram à Guerra Civil de 1861–1865, tanto que a expressão homens de raça foi usada para designar defensores da causa negra na comunidade. Em 1920 as companhias fonográficas se apropriaram da palavra para comercializar gravações de blues, jazz, spirituals, serviços religiosos, novidades e canções de orientação pop afro-norte-americanos exclusivamente para comunidades negras. No final dos anos 1940 o termo havia adquirido conotações negativas e deixou de ser usado por negros. Cf. Portia Maultsby, “Rhythm and Blues”, in Mellonee Burnim e Portia Maultsby (org.), African American Music: An Introduction, Nova York e Londres, Routledge, 245–269, 2006, 246–247.
Em português, a expressão “música de preto” carrega ambiguidade análoga, já que pode ser considerada racista fora da comunidade, mas dificilmente dentro dela.
7 Guthrie P. Ramsey, Jr., Race Music: Black Cultures from Bebop to Hip-Hop, Berkeley, Los Angeles e Londres, University of California Press, 2003, xi.
8 Sobre os significados que atribuo aos termos “ressignificação” e “apropriação”, ver Carlos Palombini, “Funk Carioca and Música Soul”, in David Horn e John Shepherd (org.), Bloomsbury Encyclopedia of Popular Music of the World, vol. 9, 317–325, Londres, Bloomsbury, 2014, 318.
9 DJ Marcelo André e Claudia Duarcha, “Entrevista: DJ Marcelo André”, Funk de Raiz, 23 de maio, 2013, http://goo.gl/flcynv.
10 Paulo Cesar de Araújo, Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar, Rio de Janeiro e São Paulo, Record, 2002.
11 Sobre racismo no Quinto Festival Internacional da Canção Popular, ver Zuza Homem de Mello, “‘BR-3’ (V FIC/TV Globo, 1970)”, A era dos festivais: uma parábola, São Paulo, Editora 34, 367–390, 2003.
12 Sonia Giacomini, A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube social da Zona Norte carioca, o Renascença Clube, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, UFMG e Iuperj, 2006.
13 Guillermo Caceres, Lucas Ferrari e Carlos Palombini, “A era Lula/Tamborzão: política e sonoridade”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 58: 157–207, 2014, http://ref.scielo.org/59rtp2.
18 Não é possível dizer quando isso aconteceu, mas uma indicação de que o trânsito entre os bailes e as arquibancadas estava estabelecido em 1994 é que no ano seguinte a Estácio de Sá apresentou a alegoria “Uma vez Flamengo”, cujo samba-enredo incluía o grito “Uh, Tererê!”, melô baseada na faixa de Miami bass “Whoomp! (There It Is)”, do grupo Tag Team (1992).
19 Rachel Soihet, A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998.
FOTO: Vincent Rosenblatt, Rio de Janeiro, quinta-feira, 1o de janeiro de 2009. © Vincent Rosenblatt / Agência Olhares