Wagner Domingues Costa: Mr. Catra

A gente vive numa ditadura capitalista, porque só se mudaram as fardas. Tiraram as fardas e colocaram os paletós e as gravatas. Mas continua a mesma coisa.

Esta entrevista foi concedida por Mr. Catra em seu camarim na Coco Bongo, em Belo Horizonte, nos vinte minutos que antecederam sua subida ao palco na madrugada de sábado, 12 de maio de 2007. Trechos da gravação foram parcialmente divulgados na semana seguinte no programa Pra Dançar, da 104,5 UFMG Educativa. A entrevista é particularmente endereçada aos alunos do curso de música eletrônica da UFMG. A fala do MC foi transcrita por Raquel Freitas e revisada por Carlos Palombini.

Carlos Palombini: — Tem alguma coisa que você queira falar pro pessoal da Escola?

Mr. Catra: — A música é a melhor terapia. A música é o melhor presente que deus deu pra gente se aliviar e fazer o pão de cada dia. E tem que perseverar porque, pra você chegar em algum lugar com a música, primeira coisa, você tem que ser puro, tem que ter muita fé. E tem que fazer música de coração. Se não, você vira mais um enlatado do sistema musical, mais um artista de mídia. Big Brother. Aquele bagulho que não existe. Deu pra tu entender? Então, pra rapaziada da música, vamos ser real, cada um fazer a sua cara, porque a música é universal: nada se cria, tudo se copia, mas cada um tem o seu jeito, cada um tem sua pegada. Cada um toca de um jeito, cada um canta de um jeito. Cada um botar seu coração, sua alma no seu trabalho. E fazer a sua correria do jeito que tem que fazer. Estudar bastante, que sem estudo a gente não vai a lugar nenhum.

Carlos: — Você não acha chato eu ficar fazendo perguntas?

Catra: — Ué, de vez em quando é legal, porque as pessoas precisam me conhecer. E eu, como sou um cara totalmente antimídia, não gosto dessa mídia normal. Eu acho os programas cafonas.

Carlos: — Como foi que você começou no funk?

Catra: — Pô, eu comecei no funk por convite do meu agente Pigmeu, meus irmãos Cidinho e Doca, e Duda do Borel. Foi por isso que eu comecei no funk. Foi um convite dos caras. Eu vim do movimento hip-hop. Eu tinha uma banda de rap. Daí eu parti pra minha dupla, Mr. Catra e Dr. Rocha. Aí começou minha carreira no funk.

Carlos: — Você falou que não gosta da mídia. Você se relaciona mal com a mídia?

Catra: — Não me relaciono mal. Não me relaciono. (Risada longa)

Carlos: — Você vê alguma diferença do público do morro, da favela, pro público do clube, pro público classe-média quando você canta?

Catra: — Sabe o que acontece? O funk foi o único movimento cultural que conseguiu nivelar todas as classes sociais. Dentro do baile funk não existe rico, não existe pobre. No baile funk todos são funkeiros. Desde o DJ até o carregador de caixa, até o técnico de som. Todos são funkeiros. Não tem diferença.

Carlos: — Você cantou na Europa também, não é?

Catra: — Eu cantei na Europa, cantei na Ásia…

Carlos: — O que você achou de cantar lá?

Catra: — Pô, achei legal! Porque, graças a deus, a gente classificou o funk como música eletrônica brasileira. É o movimento mais atual, o movimento mais moderno da música brasileira.

Carlos: — E é o primeiro gênero brasileiro de música eletrônica.

Catra: — E é o primeiro gênero brasileiro de música eletrônica. Então isso, pô, enche nosso coração de satisfação.

Carlos: — Você vê alguma diferença entre os funkeiros do Rio, os funkeiros de Belo Horizonte, os funkeiros de outros lugares?

Catra: — Funkeiro é funkeiro em tudo quanto é lugar. Curte funk? Tudo é funkeiro. Tanto aqui quanto na Europa quanto em Minas quanto em Santos quanto em Manaus, Rondônia, Goiânia. É funkeiro. Funkeiro curte funk.

Carlos: — Posso perguntar coisas mais complicadas?

Catra: — Pode, fica à vontade.

Carlos: — O que você pensa dos movimentos das milícias no Rio de Janeiro?

Catra: — Ô mano, eu sigo a mentalidade de Che Guevara. O povo conspira com quem o protege. Então, se tem o tráfico na favela, é porque o povo conspira com o tráfico. Quem manda na favela não é o traficante, não é o miliciano, não é a polícia. Quem manda na favela é o favelado, é o morador. Então, se a milícia tá na favela é porque o morador quis assim. Então a gente não pode ir contra os moradores, porque se o morador não quiser, não tem. Não tem imposição. Porque são dois por cento. Todo o tráfico, como a milícia, são dois por cento só, do contingente da favela. Dois por cento nunca vão poder brigar contra noventa e oito. Deu pra você entender?

Carlos: — Deu. Você vê alguma solução, a curto prazo, médio prazo, longo prazo, pro problema da desigualdade social no Brasil?

Catra: — Pô, o problema da desigualdade social é vergonha na cara. É só os políticos tomarem vergonha na cara. É só tomar vergonha na cara. Não tem, não tem outra, não tem. É só os cara tomarem vergonha na cara e parar de safadeza. Parar de querer botar artista em cana e encobrir político corrupto. Parar com esse bagulho de os caras mesmo votarem o salário deles. Quem tem que votar o salário é o povo. A realidade é essa, mano, o jeito que a gente bota eles lá. A gente bota eles lá pra ser deputado, governador, prefeito, pá! E a gente mesmo tinha que votar o salário que ele vai ganhar. Porque eles votam o salário do povo. Por que é que o povo não vota o salário deles? Tô errado?

Carlos: — Não, você tá certíssimo. Você acha que existe racismo no Brasil?

Catra: — Olha, o racismo no Brasil mudou. Desde quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea e não remunerou os escravos, ela não libertou os escravos, ela condenou os pobres. É o seguinte, quem vive com salário mínimo no Brasil é escravo, querido. Porque diz aí nos Direitos Humanos que o homem tem direito ao lazer, à diversão, à escola, à saúde e à alimentação, certo? Eu quero ver tu fazer isso com uma família, ganhando trezentos reais por mês. Então é escravo. Todos aqueles que ganham menos de dez salários mínimos no Brasil, todos eles são escravos. (Imagina só a quantidade de escravos que a gente tem.) Independente que seja preto, que seja branco, que seja judeu, que seja cristão: é escravo, meu irmão. É escravo do sistema. Aí, sabe o que é que acontece? O cara fica trinta anos trabalhando, e depois morre sentado na fila do INPS. Deu pra tu entender?

Carlos: — Deu.

Catra: — Então, porra…

Carlos: — Você é muito claro.

Catra: — …então, não tem que ficar maquiando as coisas. A coisa é realidade. O problema da sociedade brasileira, o problema do Brasil é que as pessoas vivem de sensação, não vivem de realidade. Desde a religião até a política, as pessoas vivem de sensação: é sensação de segurança, é sensação de poder. E realidade, não tem. Realidade nenhuma. Então é essa pegada, a pegada é essa. Eu hoje em dia não sou brasileiro, eu sou funkeiro. Deu pra tu entender? O funk é o movimento cultural que mais salva crianças da criminalidade, meninas da prostituição. Apesar das letras serem picantes, apesar do ritmo ser envolvente, ser sensual. Pô, já viu, nessa noite de hoje, quantas pessoas trabalhando em prol do funk? Quantas pessoas vão levar amanhã o pão de cada dia pra casa? E nós fomos discriminados, nós fomos proibidos de mostrar nossa cultura dentro do nosso próprio estado por vários anos. E várias pessoas, vários artistas do funk que eram renomados, que tavam aí, passam necessidade hoje.

Carlos: — E continuam proibidos?

Catra: — Não! Passam necessidade porque aquela onda toda passou. Roubaram-se todos os dinheiros. Porque o negócio é o seguinte: no funk, todo mundo quer prender funkeiro, mas ninguém pensa no direito autoral do funkeiro, ninguém pensa no direito de execução, ninguém pensa no direito artístico. O funkeiro que veio da favela tá sendo roubado por esse movimento — um movimento safado, sem vergonha — dos caras que ficam aí querendo manipular, manipular o funk. Mas o funk não é de ninguém. O funk é do povo, o funk é do favelado. O funk não tem facção, o funk não tem credo. O funk só crê em deus. Só crê em deus, não crê em mais nada. Por isso que eu digo: o funk é judeu. (Risadas longas e fortes)

Carlos: — Você acha que existe liberdade de expressão no Brasil?

Catra: — Nunca! Nunca, sabe por quê? Porque a gente perdeu a censura militar e ganhamos a censura da mídia. Então a mídia só passa aquela merda que ela gosta de passar, que é o Gugu cheio de pó na cara fazendo aquelas maluquices lá, o Faustão, pô, desrespeitando as pessoas que vão no programa dele, que aquilo lá é uma falta de respeito, toda vez que você interrompe uma pessoa que tá falando… Ensinam as pessoas a ser mal-educadas no domingo à tarde. E tá tudo certo, tá tudo legal. Tá tudo legal: aquele vestido bonito naquele corpo lindo dele, com aquela roupa, é lindo! (Risadas) Isso é legal, isso é legal, isso é bonito pra gente ver. E o mais maneiro ainda é que, pô, as caras da televisão, as caras da mídia, são todas as caras do funkeiro, né? Você vê os negão, as neguinha, tudo na televisão, tu não vê?

Carlos: — Vejo.

Catra: — Ah, pelo amor de deus!

Carlos: — Claro que vejo. (Risada)

Catra: — Pô, pelo amor de deus! Vou falar pra você aí, falar pra mídia: a maior discriminação do Brasil tá na mídia. Vou te dizer por quê. A primeira novela que teve uma família de negros de classe média, sabe qual foi o desfecho?

Carlos: — Não.

Catra: — O pai era mafioso, a mãe era conivente, o filho mais novo era homossexual, a filha mais velha casou com um loiro de olho azul, e o outro filho era corno. Legal, né? Então, não me leva a mal, de coração. Então não me leva a mal. Tô cansado de caozada! Vive na ilusão quem quer. Aí nego mete um Big Brother Brasil, faz um montão de artista que nunca vi, num sei donde veio, não sei donde é que é. Que nego é artista é o cacete! Não fez nada, ficou lá no cárcere privado, de sacanagem, uma porrada de semana na televisão, e vai sair de lá artista? Para de caô, para de caô comigo! Aí, Fama, pá, Rouge, esses caralhos todos aí que nego faz: isso não existe, meu irmão. Por que é que não faz um concurso que nem tinha, o concurso de música popular brasileira, antigamente, onde se revelaram Elis Regina, Jorge Ben, Milton Nascimento. Não tem. Não existe mais isso: a música brasileira tá pobre. Tanto no rap quanto no samba quanto no rock ’n’ roll. Tá tudo pobre! O rock Brasil tá pobre. Um rock maravilhoso que a gente tinha nos anos oitenta. Um samba lindo que a gente tinha nos anos noventa, nos anos setenta. Um movimento que andava. Pô, hoje em dia as pessoas não escutam mais música: escutam o que a mídia impõe.

Carlos: — Quais são seus funkeiros preferidos?

Catra: — Ah, eu vou falar pra você de coração?

Carlos: — É, de coração.

Catra: — Eu vou te dizer legal meus funkeiros preferidos. Pra mim o melhor de todos, o the best é Cidinho. É o Cidinho, da dupla Cidinho e Doca. O melhor melhor. Depois tem o meu parceiro, Duda do Borel, que também tem umas ideias legais. O falecido Claudinho também era muito bom, do Claudinho e Buchecha. Suel, o Suel e o Goró, também falecidos. Vamos separar? Porque o funk tem várias vertentes. Então, vamos separar, por vertentes, certo?

Carlos: — OK.

Catra: — No melody é o Marcinho, é Márcio e Goró, que hoje em dia é só Márcio G. Claudinho e Buchecha, hoje em dia é só Buchecha. A Cacau, que representa as mulheres do melody. É isso aí. No rap consciente a gente tem o Sapão, a gente tem o Duda do Borel, a gente tem o Cidinho e Doca, tem o MC Mascote, MC Galo. A gente tem MC Mulato, que eu acho legal também. Da rapaziada da antiga, do pessoal da nostalgia, que eu sempre curti, Garrincha e Julinho, Marcelo e Padilha, D’Eddy, Latino na época áurea. O Latino já é outra vertente, que é o funk brega, o funk dona-de-casa, é o funk criança. É um funk legal. É um funk pras crianças ou pras donas-de-casa que ele faz com o maior talento, com o maior respeito. Isso eu acho legal no Latino. Então o funk é legal. Os cânceres do funk são as equipes, as grandes equipes de som, que vivem — tá ligado, mano? — espremendo os moleques que nem laranja. Porque vai, suga um esse ano, depois cospe só o bagaço fora. O moleque fica sem condição. Nego não dá direito autoral, nego não dá direito de nada. Por isso que eu não tenho mais transação com equipe nenhuma.

Carlos: — Você falou aí em vários gêneros de funk, mas você não citou um nome que eu acho complicado, que é a palavra proibidão. O que você acha desse nome?

Catra: — Olha, o proibidão é a censura que você me perguntou. O proibidão — tudo que nego classifica como proibidão — é mesmo aquele lance que passava antigamente na televisão: “censura dezoito anos”. Lembra, antigamente na televisão?

Carlos: — Claro, claro que lembro: eu vivi a época da ditadura.

Catra: — Vira época da ditadura. É tipo isso. É o proibidão. Porque a gente não vive numa democracia? O artista não tem liberdade de expressão?

Carlos: — Não.

Catra: — Então a gente não vive numa democracia, a gente vive numa dita… numa… democracia… não! A gente vive numa ditadura capitalista. A gente não vive numa democracia livre. A gente vive numa ditadura capitalista, porque só se mudaram as fardas. Tiraram as fardas e colocaram os paletós e as gravatas. Mas continua a mesma coisa. Você falou a respeito das milícias. O povo da milícia é que nem os traficantes, é que nem os ladrões, é que nem todo mundo. São o povo. É o povo favelado. Que polícia também é favelado. Policial no Rio de Janeiro também é favelado, bombeiro também é favelado, porque com o salário que os caras ganham, eles têm o direito! Com o salário que eles ganham, eles têm que ser corruptos. Eles têm que ser! Com o salário que se ganha, não se vive! O salário do policial, pra ele ganhar tiro, pra ele tá na rua lá, não vive! Então ele tem que ser corrupto. Ele tem que ser corrupto, se não ele não ama a família dele. Deu pra você entender? O Estado não faz nada! Nem pelo favelado, nem pela polícia, nem pelos estudantes. O Estado não faz nada por ninguém. Eu pensei que esse governo agora ia tomar vergonha na cara, mas a gente tá numa esquerda pela direita. Eu não entendo. Eu não consigo entender.

Carlos: — Você falou da polícia agora. Você ouviu os raps da PM?

Catra: — Escuto, gostei, achei criativo, e tem espaço também. Tem espaço também pro rap da PM, pro rap da Civil, pro rap da Federal, pro rap do astronauta, do FBI… Faz rap de tudo que quiser! Pô, funk é… pô, funk é pra todos, funk não tem dono. Então quem quiser fazer uma letra que a gente ache interessante, porque o policial também tem que falar da realidade dele, tem que falar do salário dele, tem que falar da correria dele, tem que falar das guerras dele, tem que falar disso tudo. É triste, mas é real.

Carlos: — Obrigado!

Catra: — Valeu. De nada. (Som de operação finalizada no Windows)

 

FOTO: Pingente de crânio no pára-brisa de Mr. Catra. © Vincent Rosenblatt / Agência Olhares